Projeto que ganhou menção honrosa no Desafio Criativos da Escola ajuda a promover a acessibilidade e estimula estudantes a pensarem no coletivo
Era uma vez, um comerciante e aventureiro de Veneza (Itália) nascido por volta de 1254, que decidiu viver mais de 20 anos explorando a Ásia, visitando locais até então absolutamente desconhecidos para a imensa maioria dos europeus. Na volta, seus relatos viraram um livro de curiosidades sobre China, Mongólia e Japão com descrições fantasiosas de animais, então exóticos, como elefantes e rinocerontes.
Séculos depois, as aventuras narradas em As Viagens de Marco Polo, de Rusticiano de Pisa, ainda são fonte de inspiração e foram o ponto de partida para estudantes da Escola Municipal Edite Porto Mendonça de Barros, em Canhotinho (PE), se unirem para levar a literatura a pessoas cegas ou que têm dificuldades de leitura. Assim, nasceu o projeto “Além do olhar: produção de audiolivros para deficientes visuais”, que recebeu menção honrosa na última edição do prêmio Desafio Criativos da Escola.
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“Dentro da nossa turma, tínhamos o exemplo do Cícero, um aluno cego que sentia muitas dificuldades em se enturmar porque não conseguia se adaptar às aulas e aos exercícios. Vendo esses problemas de perto todos os dias, pensamos que gravar audiolivros seria uma forma legal e divertida de incluir o colega nas atividades em sala de aula”, conta o estudante Erick Hipólito da Costa, de 14 anos.
Amplificando vozes
Sob a orientação do professor de História Almy Medeiros, que trabalha com o livro As Viagens de Marco Polo em suas aulas, Erick e mais oito estudantes do 7º ano se voluntariaram para dar voz aos personagens do livro. Juntos, eles se mobilizaram e criaram um grupo no Whatsapp para organizar um calendário de ações, que incluía leitura coletiva e individual do livro, divisão dos personagens, agendamento de gravações e solicitação de equipamentos, como microfones e mesa de áudio.
Uma das principais etapas da iniciativa foi se reunir com Cícero para entender quais eram seus maiores desafios e ouvir sugestões para elaborar os audiolivros. “Normalmente, as aulas eram pensadas para os outros 39 alunos da turma e algumas coisas específicas eram feitas pensando nele. E a gente o observava [o Cícero] meio excluído. Esse projeto não toca só na questão da literatura e de acesso ao livro, como também faz ser possível pensar uma aula que contemple a todos de uma forma mais igualitária”, diz o educador Almy.
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Com tudo organizado e informações em mãos, chegou a hora de entrar em estúdio: a sala onde já é gravado o podcast da escola. Os estudantes analisaram exemplos de audiobooks, para aprender como adaptar o livro impresso para áudio, e iniciaram a gravação do primeiro capítulo. O último encontro foi para a edição do áudio e para a escuta das gravações como forma de avaliação e debate dos pontos a serem melhorados.
A estudante Ana Beatriz de Lima, de 13 anos, lembra que a tarde de gravação foi de muita risada. “Foi muito divertido, porque gravamos todos juntos, ao mesmo tempo, e estávamos nervosos. Erramos muito, tivemos que regravar nossas falas várias vezes, mas também rimos demais”. Para Erick, passar esse tempo com os colegas também foi a chance de se aproximarem. “Já éramos da mesma turma há alguns anos, mas o projeto serviu para nos tornarmos mais amigos”.
Exemplo gera mobilização
Fã de contos e histórias baseadas em fatos reais, Ana foi a escolhida para ser a narradora do audiolivro e adorou viver e aprender mais sobre as aventuras do mais famoso viajante da literatura. Já Erick encarnou Maffeo, o tio de Marco Polo, e saiu da experiência com mais gosto pela leitura.
De acordo com o professor Almy, a iniciativa promoveu mudanças dentro e fora da sala de aula. Os adolescentes aprenderam a se colocar no lugar do outro para que o projeto fosse realizado.
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“O ponto chave do Além do Olhar foi o desenvolvimento de algumas habilidades e competências principalmente a cooperação e a empatia, que no dia a dia se perdem. Aqueles que inicialmente não quiseram participar, depois se interessaram em fazer parte. O exemplo mobiliza”, comemora.
Empatia para superar desafios
O educador lembra ainda que o projeto teve de enfrentar alguns desafios para que pudesse ser realizado. Porém, a recompensa da troca fez tudo valer a pena. “Houve dificuldades de estrutura, de gravação, tempo, deslocamento, mas ouvir do Cícero o quanto ele se sentiu incluído supera os desafios” conta Almy.
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Hoje, o projeto está parado por conta da pandemia do coronavírus e da suspensão das aulas, mas estudantes e professores já têm planos para o futuro. Com o reforço de alunos de outras turmas que manifestaram interesse em participar, o grupo pretende terminar de gravar As viagens de Marco Polo e dar início a gravações de novos audiobooks.
Além de disponibilizar o material para professores usarem em sala de aula, o objetivo é criar uma biblioteca digital e liberar o acesso aos audiolivros em um site e em uma parede de QR Code na biblioteca da escola. “Para a gente parecia tão normal poder ler um livro, mas para outros não é algo tão simples assim. Nosso desejo é que, com o Além do Olhar, muito mais pessoas tenham acesso à literatura”, diz Ana, orgulhosa.
Redação: Helaine Martins
Edição: Helisa Ignácio
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